clique para imprimir esta páginaclique para imprimir este documento
POLIFONIA AQU�TICA

("Esse texto tamb�m aparece na Revista Veredas N� 3")

 
Maria do Amparo Carvas Monteiro

Introdução

O título deste trabalho poderá despertar em quem o lê ou escuta alguma estranheza ou mesmo suscitar algumas interrogações, tais como:

- Que tem a música a ver com a água?
- É possível estabelecer alguma relação entre estas duas realidades?
- Haverá porventura alguma interdependência entre elas?
- Alguma vez esta problemática foi objecto de reflexão e estudo?

Estas e outras questões ficam, naturalmente, à espera de resposta adequada, pois excedem necessariamente o âmbito deste trabalho, até porque na busca das soluções desejadas, poder-se-ão descortinar novas pistas de reflexão .

Aquela relação pode ser estudada a partir de ângulos diversos, como por exemplo:

- A visão helénica do Universo e, de modo particular, o pensar dos filósofos da Escola Jónica e Pitagórica, relativamente à interligação entre a água e a harmonia;
- O contributo da Mitologia grega e o alcance da sua linguagem simbólica;
- O pensar dos teóricos musicais da Idade Média e do período Barroco;
- A Música, enquanto fonte sonora, isto é, o estudo de instrumentos musicais, construídos a partir da água;
- E, por fim, a Água como força inspiradora para os músicos e, de maneira particular, os compositores Românticos e Impressionistas.

Estes itens levantam, naturalmente, algumas questões, tanto em relação ao passado, como em ordem ao presente e ao futuro, para cuja solução é exigida a intervenção de todos: dos compositores, dos executantes, dos musicólogos, dos escritores, dos pintores e escultores e (não menos importantes) dos apreciadores, ou seja, de todos nós, que fazemos parte deste Cosmos que está impregnado, até ao mais íntimo de si mesmo, da água cristalina da harmonia universal.

Porque o tempo disponível nos obriga a fazer opções, a nossa preferência no presente trabalho foi precisamente a Água como temática inspiradora de compositores.

Neste campo, procuraremos evidenciar a relação entre aquelas duas realidades, a Água e a Música, a primeira das quais é bem espelhada, por exemplo, no campo das artes plásticas ou da literatura, mas não tanto nas artes rítmicas.

A água, fonte de inspiração

O fascínio que a Água tem exercido no domínio das artes rítmicas remonta há muito e permanece actual.

Ao longo dos tempos os compositores, principalmente os românticos e os impressionistas, deixaram-se deslumbrar pelo brilho cintilante de cada reflexo que emanava da própria água.

Uns sentem-se atraídos pela imensidão dos mares e oceanos; outros pelo movimento perpétuo das correntes de água que, serpenteando através de ravinas e planícies verdejantes, se precipitam no mar; outros preferem o fiozinho gracioso e saltitante dos ribeiros, ou captam o fascínio da musicalidade no refluir permanente de uma fonte; outros exprimem a nostalgia escondida na cadência repousante de uma gota de água; outros ainda, espraiando-se em sonhos e devaneios, optam pela serenidade das águas calmas dos lagos, vogando em suaves barcarolas, numa competição apertada com a graciosidade dos cisnes; outros, por fim, numa perspectiva mais transcendente, optam por contemplar, no interior de si mesmos, a sublimidade das águas da Vida Eterna.

Eis pois alguns exemplos da vasta temática em apreço:

Mendelsohn recorda as suas viagens para a Inglaterra e Escócia, compondo o Mar calmo e feliz viagem1. Mas já antes Beethoven tinha escrito uma composição com o mesmo título2.

Debussy imortaliza-se com a composição O Mar3. Glazunov segue-o na esteira, escrevendo um poema sinfónico similar (Opus 28).

Prokofiev opta por escrever Nos mares polares. Chausson prefere juntar o amor e o mar, como que fundindo a imensidão de um no outro, escrevendo para isso, Poema do amor e do mar.

Sibelius, filho de um país mergulhado na água, vislumbra horizontes mais rasgados, escrevendo Oceânides. Mas em determinado momento extasia-se com o Cisne de Tuonela.

Smétana, nas areias de uma praia, sente-se arrebatado e a inspiração leva-o a escrever um esboço para um concerto, a que chamou Estudo de concerto à beira do mar.

Os oceanos não apenas esmagam pela grandiosidade, como também exaltam a fantasia.

Borodine imagina ora A bela sereia, ora A princesa do mar.

Dvorak descobre, deslizando sobre o abismo das águas, O duende aquático. Schubert escreve o Canto dos espíritos sobre a água. Estes, por vezes, habitam nalgum Castelo junto ao mar, como escreve Richard Strauss.

Smétana não vê sereias, nem princesas, nem tão pouco duendes ou espíritos. Apenas escuta a Canção do mar. Wagner imortaliza-se com a maldição de um navio, que se converteu em verdadeiro Navio fantasma.

Mas não é apenas a imensidão que inspira os músicos. Lençóis de água mais tranquilos também despertam a imaginação dos compositores.

Tchaikovsky opta pelo Lago dos Cisnes. Liszt pelo Lago de Wallenstadt; Galos escreve o Lago do Como; Fauré, deslumbrado pelos movimentos elegantes de um cisne, traduz essa mema elegância, em O Cisne sobre a água. E como nas águas tranquilas do lago se espelhava a figura magestosa desta ave, Fauré junta a esta uma outra composição, Reflexos na água. O mesmo tema já tinha servido de inspiração a Debussy .

Para Schubert, tudo o que se relaciona com a água é motivo inspirador. Por isso, tanto canta O Rio, No mar, como escreve o que neles desliza: o rodopiar de A Truta e O Canto do Cisne.

As fontes, no seu borbotar permanente, não deixaram indiferentes os músicos.

Respighi escreve as Fontes de Roma ;4 Milhaud, compõe Fontaines et Sources; Liszt prefere sonhar À beira de uma fonte. Ravel traduz como ninguém as figuras caprichosas resultantes dos jactos de água, das cascatas e dos ribeiros nos Jogos de água5. Liszt identifica esses mesmos jogos ao compor Jogos de água na Vila d�Este. Não menos expressivos são os Jactos de água de Debussy. Certamente estes terão mais encanto se acontecerem na Primavera. Por isso Rachmaninof compõe as Águas Primaveris.

Os rios e os ribeiros, com a sua musicalidade própria, cativaram um grande número de compositores, de um modo especial os românticos, que tinham em grande apreço o culto da natureza.

Para além das emoções junto de um ribeiro, que Beethoven pretende traduzir na 6� Sinfonia ,6 outros compositores porfiaram exprimir-se de modo idêntico: Chostakovich deixou para a posteridade o Regato luminoso e R. Strauss legou-nos Um passeio junto ao ribeiro (Wanderung neben dem Bache).7

Os grandes rios da Europa tiveram também os seus compositores.

Para uma viagem no rio Tamisa, numa tarde de Outono, nada melhor que a Música aquática de Haendel, ainda distante do período romântico.

Manuel de Falla regista o Canto dos remadores do Volga.

Numa homenagem à sua Pátria, Smétana descreve a Moldávia, deixando-se deslizar nas águas do Moldova, desde a nascente até ao mar.

Mussorgsky e Prokofief cantam O Dniepre; este último fica extasiado com a grandiosidade do Encontro do Volga com o Don.

Bizet descreve O Reno e Chostakovitch marca um Encontro sobre o Elba.

Menos conhecido, mas não esquecido, é o rio Ulea, imortalizado por Sibelius, quando compôs O quebrar do gelo sobre o rio Ulea.

Alguns rios ficam no anonimato, mas percebe-se a referência. Chostakovitch não indica o nome do rio ao escrever o Rio Russo ou o Canto de um grande rio.

O mais idolatrado dos rios é, sem dúvida, o Danúbio. Transvasando as margens, encheu os salões nobres de Viena e os grandes espaços de dança do mundo. Ivanovici valsea ao som das Ondas do Danúbio. Johann Strauss, contemplando nas águas o reflexo do Céu, arrasta toda a cidade de Viena, e, com ela o mundo inteiro, a dançar O belo Danúbio Azul (valsa para orquestra).8

Alguns compositores imaginaram-se vogando numa barcarola, embalados pelo cadenciar ritmado das ondas, ou competindo com algum gracioso cisne, através das águas límpidas e serenas. Traduziram essa mesma imaginação ao escreverem as Barcarolas, legando, deste modo, à posteridade páginas de rara beleza. A título de exemplo, basta citar alguns nomes como Mendelssohn, Chopin, Offenbach e Fauré.

A chuva influencia estados de alma propícios à imaginação criadora, pelos sentimentos que desperta: ora a melancolia e a solidão, ora o sonho e a saudade, ora a tristeza, o desconforto e a compaixão. Por isso, alguns compositores não escaparam à atracção deste fenómeno da natureza que, embora repetitivo, tem algo de sedutor.

Chausson deixa preceber o seu mundo interior ao compor a Chuva. Sibelius, por detrás de uma janela de sua casa, saboreia a cadência ritmada das Gotas de água. Brahms compõe a Canção da chuva. Chopin deixa-se arrastar pelo fascínio do gotejar das chuvas num beiral, ao escrever alguns dos seus Prelúdios (n�6 e n� 15). Stravinsky prefere sensações mais fortes, com o ímpeto das águas de um Dilúvio.

De tal modo a água é fonte da vida, que alguns compositores preferiram visioná-la numa perspectiva mais transcendente e mística. A água tornou-se para eles um símbolo de Vida Eterna.

Messiaen, que nunca negou a sua visão espiritualista do Universo, escreveu As Águas da Graça e A Festa das Belas Águas . Numa linha idêntica, Fauré escreve Água Viva.

Observação geral

Muitos outros compositores poderiam ser aqui mencionados, revelando igualmente quanto a água é, não apenas inspiradora mas, sobretudo, motivadora do génio musical. Ela não desperta apenas ideias e sensações, mas arrasta a mão dos compositores a traduzirem, em sons, o muito que lhes vai na alma.

Porquê este fascínio? Será que hoje essa sedução é igualmente forte?

Segundo Dogoberto L. Markl, o Mar português só entra na arte no século XIX, um Mar agitado, cujas águas com sua força gigantesca monopolizam o discurso pictórico, contrastando por exemplo com a serenidade do rio Tejo, visível no óleo de Columbano Bordalo Pinheiro intitulado CAMÕES e as TÁGIDES, representando o poeta sentado sobre rochas nas margens daquele, rodeado por água que não molha, interpelando as ninfas, em ilustração de algumas das estrofes do Canto I de Os Lusíadas.

Obedecendo ao limite temporal imposto, não podemos alongar-nos neste aspecto. No entanto não podemos deixar de referir que também a obra de alguns dos nossos compositores tem cantado este tema e, particularmente, os rios portugueses e o Mar, reflectindo o contacto permanente com este, ao longo de muitos séculos e a lusa epopeia das Descobertas .

Cabe aqui salientar os compositores Filipe Pires e as suas Canções do mar, Jorge Peixinho com Música em água e mármore e sobretudo Fernando Lopes-Graça cuja História Trágico-Marítima (composta sobre o poema de igual nome do insigne escritor Miguel Torga) constitui obra relevante da música portuguesa contemporânea.


Bibliografia Geral

ABBAGNANO, Nicola � História da Filosofia. Trad. António Borges Coelho, Franco de Sousa, Manuel Patrício, 2� ed., Lisboa: Editorial Presença, 1976, 14 vols.

COUSSEMAKER, E. � De Scriptorum de Musica Madii Aevi novam seriem a Gerbertina Alteram, Paris: A. Durand, 1864, 4 vols.

FUBINI, Enrico � La estética musical desde la Antiguedad hasta el siglo XX. Trad. Carlos Guillermo Pérez de Aranda, Madrid: Alianza Musica, 1988.

GERBERT, Martin � Scriptores ecclesiastici de musica sacra. Hildesheim, Paris, New York: Verlag, 1990.

GROUP, Diagram � Musical Instruments of The World. England: Paddington Press, 1976.

JAKOB, Friederich � L� orgue. Lausanne: Payot, 1970.

MALM, William P. � Culturas musicales del Pacifico, el Cercano Oriente y Asia. Trad. Miren Rahm, Madrid: Alianza Musica, 1985.

MARÍAS, Julián � Historia da Filosofia. Trad. Alexandre Pinheiro Torres, 3� ed., Porto: Sousa & Almeida, 1973.

MOUTSOPOULOS, Evanghélos � La Musique dans l�oeuvre de Platon. Paris, Press Universitaire de France, 1959.

RAVEL, Maurice � Lettres, Écrits, Entretiens. Trad. Dennis Collins, s.l.: Harmoniques Flammarion, 1989.

SADIE, Stanley � The New Grove Dictionary os Music and Musicians. London, 1993, 20 vols.

TRANCHEFORT, François-René � Los instrumentos musicales en el mondo. Trad. Carmen Hernández Molero, 2� ed., Madrid: Alianza Musica, 1991.


Notas

1. Abertura em Ré maior (Opus 27). A estreia, em audição privada, realizou-se em Berlim, em 07/09/1828, sob a direcção de Mendelssohn.

2. O texto goeteano havia sido tratado, em 1825, por Beethoven, com a contribuição de um coro. Mendelssohn limita-se à orquestração, introduzindo nela uma instrumentação e harmonização que visam o efeito descritivo.

3. A estreia desta sinfonia, única do autor, ocorreu a 15/10/1905, em Paris, nos Concertos Lamoureux, sob a direcção de Camille Chevillard.

4. 1� parte do que viria a ser a Trilogia Romana, composta em 1916 e estreada em Roma , no dia 11 de Março de 1917. As suas 4 partes, executadas sem interrupção, apresentam-se como evocações sucessivas de fontes célebres.

5. Maurice Ravel, 1989, p. 44 "(�) Cette pièce, inspirée du bruit de l'eau et des sons musicaux que font entendre les jets d'eau, les cascads et les ruisseaux".

6. Dos 5 andamentos desta Sinfonia, o segundo intitula-se Cena à beira do regato . Neste, o autor revela algumas intenções descritivas ou imitativas, desde o murmúrio do regato ao canto das aves .

7. Da produção puramente orquestral, Sinfonia Alpina (o manuscrito conserva �se na Biblioteca Nacional de Paris), um dos 22 locais notados pelo compositor, o n� 5, especificando as etapas do viajante e os seus percursos.

8. A versão coral desta peça que deu a volta ao mundo, foi executada pela 1� vez, sem qualquer sucesso, em 1867.

Hosted by www.Geocities.ws

1